COM ESSE CONGRESSO NÃO DÁ!
Contribuição de Alessandro Soares e Markus Sokol ao ENDAP sobre a crise da instituições
O funcionamento do sistema político (eleições, partidos e relação entre os poderes) estruturado pela Constituição de 1988 tem mostrado um conjunto de limites e obstáculos à democratização das instituições e da sociedade.
Para começo de conversa nossa Constituição possui graves contradições internas
O texto constitucional prevê um conjunto de direitos e garantias fundamentais ao povo brasileiro: vida, igualdade, liberdade, desenvolvimento da personalidade, trabalho, salário-mínimo, moradia, saúde, educação, meio ambiente ecologicamente equilibrado etc. Reconhece-se também a proteção específica das populações originárias (indígenas) e quilombolas, da família, da criança, do adolescente, do idoso… Vários desses direitos aparecem formulados “como direito de cidadão e dever do Estado”.
Visando dar efetividade a esses direitos e transformar a realidade brasileira, a Constituição apontava um estado interventor na ordem econômica e prestador de serviços públicos. Ou seja, legitimava a manutenção e criação de empresas de domínio público estatal para a prestação de serviços de interesse coletivo. Seguindo a Constituição, vemos que o Estado deve ser um produtor de políticas públicas e não um mero observador ou regulador dos conflitos do mercado.
Uma imensa parte dos direitos e garantias estabelecidos pela Constituição são uma sinalização para o futuro e dependem, para a sua materialização, da aprovação de leis e medidas no âmbito do PODER LEGISLATIVO. Em resumo, o Legislativo tem um amplo poder de direção política a partir da Constituição.
Um exemplo: a Constituição, a partir da Emenda Constitucional n. 114, determina que todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinadas em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária. Ou seja, se o Congresso não editar a lei prevista na Constituição, o direito constitucional à renda básica para a população vulnerável torna-se letra morta. Ademais, o Congresso ainda poderá editar essa lei limitando o acesso a esse direito ou outros em nome das regras fiscais e orçamentárias.
Dessa forma, um dos requisitos para a efetivação da Constituição de 1988 é a formação de consensos políticos dentro do Legislativo. Melhor dizendo, faria-se necessário a conformação de uma maioria parlamentar pró Constituição.
Ocorre, no entanto, que as eleições proporcionais para a Câmara e majoritária para o Senado resultam, invariavelmente, em domínio de partidos e alas de direita e conservadoras no Congresso. Grupos de parlamentares que em essência têm pouco interesse em ver as promessas constitucionais cumpridas. A missão dessas maiorias de direita e conservadora têm sido bloquear mudanças substantivas, impedir avanços sociais e, quando oportuno, impor recuos no campo dos direitos e da forma do Estado definidos na Constituição de 1988.
Para exemplificar os recuos basta apontar algumas Emendas Constitucionais, isto é, alterações da Constituição (e até o momento já foram 129 emendas) que tiveram o claro intuito de modificar as obrigações sociais do Estado brasileiro, impondo uma política neoliberal camuflada num discurso de modernização. Emendas n. 08 e 09 já de 1988 (sob o governo Sarney), no mesmo ano da promulgação da Carta constitucional, que possibilitaram a venda, concessão e privatização de Empresas Públicas; Emenda n. 19 de 1998 (Reforma do Estado no governo FHC) que alterou diversos artigos da Constituição com a finalidade de aplicar ao Estado concepções de gestão de mercado, precarizando, inclusive o funcionalismo público; e a Emenda n. 95 (governo Temer) que estabeleceu o teto de gastos públicos, em detrimento direto ao fortalecimento das políticas públicas.
Podemos dizer, portanto, que o nosso sistema político tende a gerar maiorias parlamentares contra a Constituição.
Balcão de negócios
Ao competir e vencer eleições presidenciais, o PT tem lidado com esse sistema político. O governo necessita aprovar suas pautas no Congresso, mas encontra uma Câmara e um Senado dominado por forças conservadoras.
Vale notar que a Constituição de 1988 conferiu ao Congresso vários mecanismos jurídicos que efetivamente podem inviabilizar um governo (não aprovação de medida provisória; não aprovação de Emenda Constitucional; não aprovação de tratados; sustar decretos do poder executivo…).
Para garantir a governabilidade e evitar a paralisia, o governo vai ao balcão de negócios do Congresso (travar acordos sobre Ministérios, emendas, comando do Congresso…) para conseguir a maioria necessária. Forma-se uma coalizão eclética de partidos e parlamentares na base do governo.
Essa dinâmica política acaba incentivando a criação de partidos para exercício de trocas no futuro. São partidos, em regra, sem vida ou estrutura partidária real, cujas siglas não correspondem aos ideais políticos de seus membros. A imensa maioria dos partidos são fachadas para grupos de direita alicerçarem suas candidaturas e depois venderem seu apoio ao governo de turno.
Ao contrário do que se imagina, as negociações no Congresso não são mera compra de apoio no parlamento (governabilidade). Não se trata de uma relação completamente vazia de sentidos e concepções políticas e ideológicas. Se assim fosse, bastava estar na presidência do país para que fosse possível implementar um programa partidário. Qualquer Governo estaria apto a literalmente comprar a vontade do Poder Legislativo.
De fato, entrar nessa dinâmica política institucional implica, ao menos, em 4 efeitos potenciais:
- Amplificação de problemas de legitimidade (ética, uma vez que não se vê com bons olhos a entrega de cargos e emendas em troca de apoios. Tal circunstância é piorada com os escândalos de corrupção envolvendo cargos e recursos distribuídos. Em momentos de estabilidade ou crescimento econômico, com certa distribuição de renda, isso não gera grandes desafios para sistema político, mas nos momentos de crise econômica e social a situação tende a ser problemática.
- Um partido de esquerda, ao ter em sua base parlamentar partidos e políticos tradicionais de direita, inevitavelmente verá seu horizonte político reduzido. Suas propostas políticas serão puxadas pela força gravitacional do centro político. A base conservadora do Congresso exercerá poderes de veto. Mudanças serão permitidas a depender de cada contexto. Podemos chamar esse fenômeno de governabilidade com achatamento do horizonte político ou governabilidade decisória sem governabilidade política.
- Cria a ilusão de uma estabilidade eterna, como se o sistema político tivesse encontrado seu ponto de equilíbrio que permitiria mudanças rumo à efetivação dos direitos e garantias previstos na Constituição de 1988, mas que, todavia, na hora “h”, sempre dizem que não cabem no Orçamento.
- Crença no Poder Judiciário como solucionador de impasses em políticas públicas e disputas pelo Poder. Burocratização da política e politização do judiciário.
O atual momento do país revela, então, uma crise profunda no funcionamento do sistema político de 1988.
As mobilizações de junho-julho de 2013, há dez anos, constituem um dos sintomas da crise. Embora difícil de precisar, podemos dizer que as revoltas de rua de 2013 giravam entorno de demandas por direitos (transporte, saúde e educação, por exemplo) e crítica ao poder (discursos contra a corrupção e uma narrativa punitivista contra os políticos).
Como ampliar e garantir direitos com esse Congresso?
Após a derrota de 2014 nas eleições presidenciais, uma fração da direita passa a não ver legitimidade nos processos eleitorais. O golpe parlamentar contra Dilma Rousseff (2016), a prisão de Lula, a sua respectiva inelegibilidade (2018) e a ascensão da extrema direita com a vitória do Bolsonaro refletem numa reação conservadora do Congresso, do mercado e da classe dominante, com apoio da grande mídia.
Essa deterioração política revelou um outro elemento problemático com relação ao Estado brasileiro: a atuação política de agentes burocráticos. Membros do Poder Judiciário, Ministério Público e Militares foram fundamentais para o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula.
O governo Bolsonaro praticamente se funde com o conservadorismo do Congresso. O campo econômico é entregue ao mercado, que silencia completamente quanto aos ataques diários à democracia e ao povo brasileiro.
Artur Lira, assim como antes Eduardo Cunha, representa as forças conservadoras do Congresso num movimento de busca de hegemonia. Isso faz com que o sistema político pareça invertido. É como se o governo eleito fosse a composição do Congresso e a presidência, numa linha de transmissão do Parlamento. Vale dizer, nosso problema não é o Artur Lira em si, mas a modelagem e deformação do sistema político.
Artur Lira já fez questão de dizer que o Congresso é “liberal e conservador” e que a “realidade fática de um Congresso hoje não é igual ao de um Congresso de 20 anos atrás”. Traduzindo, o presidente da Câmara está afirmando ao governo e ao presidente Lula que o “pacto” de 1988 não é mais o mesmo, que o preço para formação da coalizão governante é muito mais alto e que o governo tem muito menos liberdade em determinar pautas e conteúdos.
De fato, o Congresso está forçando uma espécie de sistema bizarro, sem alterar a Constituição formalmente e sem informar ao eleitor, em que procura sobrepor-se à Presidência, gerando distorção na soberania do voto popular e no processo democrático.
A tendência é a tensão entre governo e Congresso aumentar e criar momentos de impasse. A ameaça de Artur Lira em não aprovar a Medida Provisória de reorganização do Poder Executivo, no início do governo Lula, é sintomática quanto a isso.
A apresentação do projeto do Marco Fiscal pelo governo representa, de fato, um veto do mercado a qualquer medida que implique revogação do teto de gastos. Joga-se no terreno do inimigo. Não é muito diferente do que ocorre com a proposta de Reforma tributária.
A estratégia do governo nesse cenário parece ser a de ampliar sua base, cedendo espaços para forças e agentes políticos que até ontem estavam contra o Partido dos Trabalhadores e davam sustentação ao governo Bolsonaro. Contradição inerente ao sistema político.
O Governo tem, portanto, evitado maior atrito com o Congresso, circunstância que dá sobrevida ao sistema político de 1988, retroalimentando todos os seus vícios e limitações.
De um lado temos a necessidade de mudanças profundas da realidade brasileira, a urgência de rever diversos retrocessos implementados, particularmente, pelos Governos Temer e Bolsonaro, de outro temos um Congresso que cobrará cada vez mais caro pela governabilidade limitada do Governo Lula.
Estamos diante de uma verdadeira encruzilhada política e constitucional.
Uma luta do povo
Por óbvio, o Congresso não tem o menor interesse em modificar as regras atuais do sistema político, salvo para aprofundar seu traço oligárquico ou fazer alterações restritas.
Uma das saídas poderia ser a mobilização popular com a realização de referendo ou plebiscito, mas essa via está praticamente fechada pela Constituição de 1988. Pelo texto constitucional somente o Congresso pode acionar os mecanismos de democracia direta (realização de consultas populares).
A Constituição prevê a possibilidade de iniciativas populares somente em matéria legislativa. Dessa forma, é possível coletar apoios populares apenas para a apresentação de projetos de lei perante a Câmara dos Deputados. O destino desses projetos, sua aprovação ou não, depende da vontade do Congresso. Trata-se, como se observa, de um poder muito limitado. Essa regulação da Iniciativa popular na Constituição de 1988 reforça o perfil oligárquico de nossa democracia (hegemonia da representação parlamentar). A Constituição silencia quanto a possibilidade de iniciativas populares para a propositura de emendas constitucionais, convocação de referendo, plebiscito e procedimento de revogação de mandatos.
Por essa razão, devemos entender que uma Reforma que aprofunde e radicalize a democracia terá que ter por fundamento o debate e a participação popular ampla.
A proposta de um plebiscito para convocação de uma Constituinte exclusiva para reforma do sistema político, apresentada pelo governo Dilma em resposta às mobilizações de junho de 2013, seguia exatamente essa linha.
Vale repetir, os atuais integrantes do Congresso não terão qualquer interesse em modificar o sistema político.
A Constituição só poderá ser alterada, de maneira legítima, por um órgão com alta densidade democrática e que não esteja atrelado à velha ordem.
Não se trata de querer uma Constituinte amanhã pela manhã, mas de reconhecer esse horizonte político como incontornável e necessário. Vale lembrar que 6o Congresso do PT (2017) retomou bandeira da Constituinte em resolução.
Uma Constituinte verdadeiramente Soberana
A Constituinte de 1987-88 foi composta pelos membros da Câmara e do Senado, conformando um Congresso Constituinte. O que precisamos hoje é de uma Constituinte de verdade, isto é, Soberana, para alterar as instituições políticas, portanto, sem subordinar-se a elas (Congresso, STF e Presidência).
O conteúdo da reforma política para tanto deve abarcar alguns temas, por exemplo: voto em lista pré-ordenada (cada partido decide em que ordem coloca trabalhadores, negros, mulheres, LGBT etc.); cota de cadeiras indígenas na Constituinte; proporcionalidade direta (um cidadão ou cidadã = um voto) e financiamento público exclusivo de campanhas políticas.
Para enraizar-se na massa do povo, a bandeira da Constituinte deve estar sempre associada às necessidades concretas dos trabalhadores, do povo e da democracia. Deve ter no seu horizonte, questões tais como a revogação da Reforma Trabalhista; uma estrutura tributária que taxe efetivamente os ricos, os bancos e as multinacionais (diferente da atual “reforma”); a reforma agrária, a demarcação de todas as terras indígenas e a titulação de todos quilombos; a volta do monopólio estatal do petróleo, a reforma militar (artigo 142 sem GLO, desmilitarização das PMs); a reforma do sistema de Justiça no sentido de sua democratização e transparência; a garantia de verbas suficientes para a educação pública, e assim por diante.
Não há outra conclusão a tirar do balanço dos seis primeiros meses: uma Assembleia Constituinte, com a liderança do presidente Lula nesse debate, não há outro caminho!