Cinco perguntas a Haim Bresheet
Breve biografia de Haim Bresheet (ex-membro do Partido Trabalhista do Reino Unido) Nascido no seio de uma família judia polaca, que foi dizimada nos campos de concentração nazis, Haim Bresheet é um antigo oficial do Exército israelense que se tornou pacifista e militante anti-sionista, defensor fervoroso dos direitos dos palestinos e membro fundador da Rede Judaica para a Palestina, sendo hoje professor na Universidade SOAS de Londres e diretor de cinema. É também membro fundador da ODSC (Campanha para um Único Estado Democrático) na Palestina.
Entrevista publicada em “Informations Ouvrières” do POI da França – nº 803, de 10 de Abril de 2024,
1 – Qual é o seu ponto de vista sobre a situação no Reino-Unido e no seio do Partido Trabalhista?
Haim Bresheet: Penso que a situação vai bastante para além do Partido Trabalhista. O Partido Trabalhista é agora uma organização defunta. Sob o comando de Corbyn foi relançado. Contava menos de 100 mil membros quando Corbyn tomou as rédeas. Juntei-me a ele com um meio milhão de antigos e novos membros. Principalmente novos.
Tornou-se numa organização de seiscentas mil pessoas, a maior organização política da Europa. Uma proeza a que os socialistas não deram ainda o devido valor e que, em seguida, foi totalmente destruído. Hoje não conta com mais de 150.000 membros.
Todos nós abandonámos o partido. Alguns de entre nós foram expulsos. Eu deixei o partido quando Ken Loach, o cineasta, foi denunciado como antissemita. Sou igualmente cineasta e trata-se de um amigo que me é muito caro.
Quando Ken Loach, que é um antirracista de 75 anos, foi expulso por antissemitismo, eu disse: Não, não posso estar neste partido. Escrevi uma carta pública e me demiti.
Foi o que aconteceu a milhares de socialistas judeus; várias dezenas de milhar de entre eles deixaram o partido.
O partido não é mais do que a sombra do que era há apenas sete anos. O seu problema não é o antissemitismo. O problema é que os socialistas o deixam. Quer sejam judeus ou não, os socialistas deixaram-no porque ele tomou posições inaceitáveis. Apoia o genocídio de Gaza. Apoia aquilo a que ele chama o direito à existência de Israel, o direito a matar tantos palestinos quantos quiser.
O seu dirigente máximo apoiou o bloqueio da comida, da água, dos medicamentos, dos combustíveis, de tudo – tal como o primeiro-ministro Rishi Sunak. Eles partilham a mesma posição sobre a Palestina. Apoiam o genocídio. Deviam comparecer perante a Corte Internacional de Justiça, pois são pessoalmente responsáveis pela promoção do genocídio. O problema do partido não são apenas as falsas acusações de antissemitismo. O principal problema é que este partido é hostil aos socialistas e ao socialismo. O seu líder é, ao mesmo tempo, sionista e admirador da sra. Thatcher, que é tudo aquilo que um líder trabalhista não precisa ser.
2 – Existem hoje novas formações políticas?
Sim, existem numerosos agrupamentos políticos, quer nacionais quer locais, de socialistas que se opõem aos Trabalhistas. No lugar onde vivo, todos os vereadores de esquerda do partido demitiram-se e criaram uma nova Aliança Socialista. Ouviram provavelmente falar da eleição parcial em Rochdale, onde um socialista, George Galloway, ganhou contra o Partido Trabalhista com uma enorme maioria. Outros candidatos, inclusive em Londres, vão agir de igual modo. Um dos mais importantes antissionistas de Londres, Andrew Feinstein, que foi ministro na África do Sul sob Mandela, apresenta-se agora contra Keir Starmer (atual Secretário-Geral do Partido Trabalhista) na sua circunscrição. Keir Starmer poderá mesmo, é uma possibilidade, não ser eleito na sua própria circunscrição se os socialistas votarem no bom candidato.
Vocês sabem, há coisas novas muito interessantes acontecendo. Mas no conjunto, não estou muito otimista em relação ao Partido Trabalhista, porque a sua oposição às políticas de esquerda está de tal modo enraizada que não pode ganhar facilmente.
Vivo em Londres há cerca de 55 anos. O Partido Trabalhista durante a minha vida, mas também antes, nunca foi um partido de esquerda, salvo em 1945. Vocês sabem o que se passou após 1945. Puseram de pé o primeiro Estado-providência da Europa. Mas, antes e também depois, apoiaram sempre o sionismo.
E apoiaram o sionismo porque acreditavam nos mitos sobre o “sionismo de esquerda”, que a Histradruth era uma organização socialista porque é uma federação sindical. Acreditavam que os habitantes dos kibutz eram socialistas, ainda que eles tenham sido sempre ultra sionistas e de direita. Nenhum kibutz alguma vez aceitou um palestiniano no seu interior – eles eram a vanguarda do sionismo, conduzindo a batalha contra a Palestina.
O Partido Trabalhista pôs-se ao lado do sionismo, um pouco como a União Soviética o fez, em1947, votando pela constituição do Estado judaico (Israel). Mas a União Soviética mudou de posição. O Partido Trabalhista nunca o fez. O partido apoiou igualmente a Declaração Balfour, em 1917. A história do sionismo no seio do Partido Trabalhista data de há mais de 100 anos. Penso dever lembrar que quando da eleição de Corbyn, foi a primeira vez que o Partido Trabalhista adoptou uma posição progressista sobre a Palestina. E, por isso, ele foi destituído pelos Tories (Conservadores), a direita trabalhista e o lobby israelense.
3 – Há meses existem enormes manifestações no Reino Unido, as mais importantes talvez na Europa. Como é que se explica?
Há duas coisas. Eu queria colocar uma questão a este propósito, igualmente porque é importante para nós compreender o que se passa na França. Esta reunião de hoje (trata-se do Encontro Judaico Internacional, realizado em Paris a 30 de Março – NdT) vai tornar-se, penso eu, e vou lutar por isso, um fórum para o lançamento de uma Federação antissionista europeia. É o que nós queremos. É importante. E isto se passa na França. Podem imaginar? Podem acreditar nisso? Estou muito contente que isto aconteça. Teria gostado que fosse em Londres, mas se passa na França porque se trata da Europa, e nós, no Reino Unido, saímos da Europa (União Europeia – NdT) e do atual jogo europeu, o que nos entristece a todos. Nós éramos contra o Brexit.
Num certo sentido, o que se passa em Londres é atípico.
Tivemos 1,8 milhão de pessoas nas ruas de Londres em 11 de Novembro, dia da comemoração da Primeira Guerra Mundial. Numerosas pessoas deixaram o Partido Trabalhista pela sua raiva contra Keir Starmer (atual secretário-geral do Partido Trabalhista) e o que ele fez a Corbyn, ao partido e ao Reino Unido, pondo em prática políticas de direita, as políticas anti-imigração, as políticas contra a Palestina e a favor do genocídio. É muito grave.
A revolta é grande na esquerda. A esquerda que estava adormecida, mas que foi acordada por Corbyn, procura um motivo em torno do qual se organizar, e a Palestina é esse motivo.
É, pois, esta uma das razões. A esquerda identificou a Palestina como um símbolo.
A outra razão, a mais importante, é que se trata do primeiro genocídio que passa no celular. É o primeiro genocídio em que as pessoas que o alvo do genocídio o relatam. Os meus vizinhos próximos têm dois filhos e a sua neta disse ao pai: “Papai, o que fazemos se Israel vier matar-nos?”
Porque eles veem na televisão. Veem no seu celular. Veem não compreendem. Têm medo porque veem crianças serem mortas. Isto nunca aconteceu antes. Nunca aconteceu que bilhões de pessoas assistam a um genocídio em curso.
Sabe, todos os membros da minha família foram mortos no genocídio dos judeus durante o Holocausto. Vinham da Polônia, o meu pai e a minha mãe foram ambos internados em Auschwitz e perderam toda a sua família. Eram os únicos sobreviventes da família, mas ninguém sabia na época. Sabiam que os Nazis eram horríveis. Sabiam que era preciso combater os Nazis. Alguns deles combateram os Nazis, inclusive na França, mas não havia reportagem diária sobre Auschwitz, sobre Birkenau. Nada disso era conhecido. E mesmo quando pessoas escaparam de Auschwitz, só duas conseguiram fazê-lo, o seu relatório não foi tornado público e não teve qualquer impacto.
4 – As redes de televisão britânicas transmitem o massacre dos palestinos?
Começaram relatando principalmente as notícias do Exército israelense. Foi o que fizeram em outubro e novembro. Mas depois do final do mês de outubro, mais de um milhão de pessoas desceu à rua por duas vezes. Depois, começaram a refletir. Com toda a evidência, os jornalistas no local, e numerosos jornalistas da BBC, da Channel 4 e de outros canais da TV, assim como os leitores dos jornais, disseram: “Esperem um minuto, as pessoas veem a Al Jazeera. Todo mundo pode ver a Al Jazeera. Todo nós vimos toda a espécie de informações provenientes de Gaza. As pessoas veem isto e nós não falamos. A BBC não fala, o Channel 4 também não. Não é correto.” Começaram então a fazer pressão sobre a BBC e os outros canais.
A BBC começou a mudar em dezembro. Mas a grande mudança teve lugar em janeiro, após a intervenção do Corte Penal Internacional, porque as coisas tornaram-se oficiais. Israel é julgado, de algum modo, por genocídio. A Corte Internacional de Justiça não teria aceito a suspeita de genocídio se não houvesse uma base jurídica para aceitá-la. Ela não o aceitou simplesmente porque a África do Sul o veio dizer, porque sabe manifestamente que há mais do que uma simples suspeita de genocídio. Trata-se realmente de um genocídio. E, uma vez que isto aconteceu, tudo começou a mudar.
5 – O problema é que na França, ao contrário do Reino Unido, não houve quase nenhuma referência na televisão à sentença da Corte Internacional de Justiça. E muito poucas referências sobre o massacre dos palestinos. E para cúmulo de tudo, um dos maiores problemas que temos é uma campanha orquestrada pelo governo para equiparar o antissionismo com o antissemitismo.
Sempre que alguém fala sobre o massacre dos palestinos o que o governo israelense faz é acusar de antissemitismo. E Jean-Luc Mélenchon (líder da França Insubmissa, ex-candidato a presidente- NdT), em particular. Há uma enorme campanha vinda de todos os lado, incluindo o Partido Comunista, para dizer que ele é antissemita porque critica a política israelense. Ele apoiou a queixa dirigida pela África do Sul À CIJ. Este é um problema crucial na França.
É também a razão pela qual não tem havido manifestações como no Reino Unido. Embora, no início de Março, tenha tido 40.000 pessoas nas ruas de Paris e, todos os sábados desde outubro, tem havido inúmeras manifestações. O outro problema é que estamos lutando no seio dos sindicatos para que eles participem nas manifestações e isso é difícil.
No Reino Unido, os sindicatos parecem estar mais envolvidos.
Nem todos os sindicatos. Até janeiro, nunca se viu uma bandeira sindical numa manifestação. Depois de milhões de pessoas saírem às ruas, só começaram a participar as universidades e as escolas secundárias (cujos professores pertencem ao sindicato University and College Union – UCU – do qual sou membro), porque nas universidades há, obviamente, professores radicais e eles saíram às ruas. Só este e não os sindicatos dos outros trabalhadores: foram os acadêmicos que lideraram a dança.
Continuamos lutando pela participação dentro do maior sindicato, o Unite, que tem um milhão e meio de membros. A sua líder apoia Israel. Mas os membros do sindicato estão totalmente contra ela. É um problema difícil. A posição política do sindicato é de apoio à Palestina. Mas ela recusa-se a permitir que as bandeiras do sindicato sejam levadas nas manifestações. O sindicato tem um congresso anual, onde todos os delegados votam a favor da Palestina; e, um minuto depois do Congresso acabar, tudo volta ao normal, ao apoio a Israel, à recusa de um cessar-fogo e à recusa em apoiar as pessoas que estão morrendo de fome. Não vamos conseguir mudar isto imediatamente, mas os membros do sindicato vão fazê-lo.
Em relação ao jogo do falso antissemitismo, a situação não é diferente no Reino Unido. Este governo usa o antissemitismo, da forma mais nojenta possível, contra os judeus como nós. É isto que faz.
Mas ainda não abordei a segunda razão que explica porque é que os protestos de Londres são tão importantes. Nós não temos tantos muçulmanos como na França, mas temos muitos. Desde a guerra no Iraque, a primeira vez que saíram à rua em 2003, eles têm foram muito discretos, porque o governo – após a guerra no Iraque – tinha adotado normas draconianas contra os ativistas muçulmanos. Não o disse abertamente. Mas era claramente um legislação islamofóbica, chamada Prevent, para prevenir o extremismo.
E o extremismo era essencialmente o Islã. Todo mundo percebeu isso. Vocês compreendem o que quero dizer. Estavam muito assustados. Não havia muitos muçulmanos do Médio Oriente. A maioria vinha do Bangladesh, do Paquistão e da Índia. Eram muçulmanos, mas não árabes.
Mas a guerra na Síria e o prosseguimento das guerras no Iraque e na Líbia levaram à emigração, depois de 2003, de milhões de pessoas do mundo árabe, mas também da Turquia e do Curdistão. Todas estas guerras travadas pelo Ocidente no Oriente Médio produziram um grande número de refugiados que vieram para o Reino Unido. E eles preocupam-se com o que está a acontecer na Palestina. E isso provocou uma mudança.
No início, eram muito poucos. Eu participei em todas as manifestações, com exceção da de hoje. Conheço, portanto, a composição das manifestações.
Falei numa série de manifestações, em Londres e na Escócia. Sei quem está nas manifestações. Nas primeiras manifestações, já havia 200.000 pessoas. Eram maioritariamente jovens muçulmanos, jovens britânicos e muito judeus velhos. Mas, quanto mais o Governo falava sobre o Islã e o antissemitismo, como se ser muçulmano fosse ser antissemita, mais as pessoas ficavam furiosas.
A ministra do Interior, Suella Braverman, que tutelava a Polícia, era casada com um judeu sionista. Ela era tão racista contra os muçulmanos e os árabes, um pouco como Modi na Índia, que levou 1,8 milhões de pessoas para as ruas porque disse que os muçulmanos estavam inundando a Inglaterra com o extremismo, que eles eram terroristas, e outros disparates do gênero. E eles saíram para as ruas com os seus filhos, as suas esposas, famílias inteiras. E isso não mudou desde então. Nas manifestações, o slogan mudou de “Palestina livre do rio ao mar”, para “Livremo-nos de Suella Braverman”. Era esse o novo slogan. E livramo-nos dela – foi despedida (exonerada) no dia seguinte ao da maior manifestação!