O que se passa na Nicarágua?

por Julio Turra*

As eleições de 7 de novembro na Nicarágua despertaram a discussão sobre o que se passa no país centro-americano que foi berço, em 1979, da revolução sandinista que derrubou a ditadura Somoza, infringindo um golpe no imperialismo dos EUA numa zona considerada por ele como, mais que um quintal, uma dependência direta.

Para militantes da minha geração, o apoio à revolução sandinista foi alvo de campanhas de solidariedade e de engajamento direto na luta contra Somoza, prosseguida depois com os “contras” armados e treinados por Washington. Ela impactou, por exemplo, os primeiros anos do PT e da CUT no Brasil.

Passados mais de 40 anos, com todas as mudanças que ocorreram no mundo, é preciso ver a realidade do que se passa na Nicarágua. Somos – da mesma forma que em relação à Cuba e à Venezuela – incondicionais na defesa da Nicarágua contra a ingerência e as agressões do imperialismo, bloqueios econômicos e sanções, os quais prejudicam, em primeiro lugar, os povos.

Quando dizemos incondicionais, é porque tal posição independe do juízo político que tenhamos dos governos e políticas que aplicam em cada um desses países. Mas temos sim um juízo político, uma posição independente, que não nos permite concordar que a vitória eleitoral do casal presidencial Daniel Ortega e Rosário Murillo, em 7 de novembro passado, seja a continuidade da revolução sandinista ou fruto da vontade popular e democrática por um país justo e igualitário, como pensam alguns.

Antecedentes

Ortega foi presidente da Nicarágua entre 1979 e 1990, época da guerra com os “contra” e da queda do muro de Berlim. Ele voltou a assumir a presidência em 2007, após uma década de governos pró-imperialistas, com maioria relativa de 38% dos votos da Frente Sandinista (FSLN).

Foi graças a um acordo político com o presidente anterior, o “ex-contra” Arnoldo Alemán do Partido Liberal Constitucionalista (PLC), que Ortega obteve maioria na Assembleia Nacional. Ortega já começara a se livrar de antigas lideranças da FSLN e, ao reassumir o poder, passou a cercar-se de homens de confiança e familiares, metendo-se em negócios privados que o fizeram um dos homens mais ricos do país.

Nas eleições municipais de 2008, a oposição, sob a legenda do PLC, ganhou inclusive na capital Manágua, mas o Poder Eleitoral, controlado pela FSLN, fraudou os resultados. Com atritos na Assembleia Nacional com o PLC sobre uma reforma constitucional, Ortega passa a apoiar-se em deputados da direita liberal (ALN) para obter maioria.

Em 2010 são aprovadas três leis que mudaram o sistema político: a da Segurança Democrática, a de Defesa Nacional e a do Regime único de fronteiras, que tornaram o país, na expressão de um veterano da guerra contra Somoza, um “estado policial”.

Em 2011 ocorrem novas eleições, com denúncias de fraude, em que os votos declarados para os deputados da FSLN foram maiores que os dados à reeleição de Ortega (62%). Com maioria parlamentar, o governo retoma a proposta de reforma constitucional, criando um sistema baseado na lealdade pessoal ao presidente, chefe supremo das Forças Armadas e da Polícia Nacional, garantindo a sua reeleição indefinida. Em 2016, com Rosário como vice, Daniel Ortega obtém 72% dos votos.

A explosão social de 2018

O uso dos símbolos da FSLN pelos “orteguistas” não impede a perseguição política e policial a dirigentes históricos do sandinismo, sempre que ousem fazer críticas ao poder discricionário do casal Ortega-Murillo.

A Nicarágua, pelas mãos de Ortega, tornou-se membro do Tratado de Livre Comércio da América Central (Cafta), de “abertura de mercados” com os EUA. Ao redor de seu governo e competindo com a elite tradicional, formou-se uma “burguesia compradora” (importação e exportação) que, a exemplo de seu chefe, enriquece rapidamente.

Nesse quadro, em abril de 2018, o anúncio de uma reforma da Previdência, acordada com o FMI, provocou protestos de massa em todo o país, exigindo a saída do casal presidencial. A repressão policial e de milícias pró-governo deixou mais de 300 mortos, milhares de feridos e centenas de presos. O governo acusou os manifestantes de “golpe” contra o seu mandato e de serem manipulados pelo imperialismo. Desde então, 140 mil pessoas saíram do país e até hoje há mais de 160 presos políticos (entre os quais os sete pré-candidatos da oposição no período mais recente).

Em 2020, com a chegada da Covid-19 ao país, Ortega adotou posição “negacionista”, enquanto sua esposa Rosário organizava atos religiosos para orar pela saúde do povo. Mas a perseguição contra opositores, em particular dissidentes sandinistas, não cessou.

E agora?

Desde julho de 2018 o país vive um estado de sítio não declarado. Segundo testemunham residentes na Nicarágua, as eleições de 7 de novembro tiveram ruas vazias, pequeno comércio fechado, pouca gente nos locais de votação. Um país parado e silencioso em protesto contra a farsa eleitoral.

A abstenção era de 80%, nos primeiros dados oficiais, que foram “corrigidos” ao longo dos dias pelo conselho eleitoral (CSE). Assim, ainda que o “orteguismo” preserve o poder, com maioria absoluta na Assembleia Nacional, aumentou o rechaço do povo ao seu regime político. A repressão dos últimos três anos enfraqueceu a resistência popular, mas ela pode reaparecer, ainda mais diante da crise econômica que afeta o país.

É claro que o imperialismo, EUA e governos da União Europeia, aproveita a situação para defender os interesses do grande capital, não reconhecendo os resultados dessas eleições. São cínicos ao falar em “democracia” e as suas sanções caem nas costas do povo nicaragüense.

Mas a que serve, para a luta dos trabalhadores e povos pela emancipação, negar a onda repressiva e a manipulação das eleições por parte do regime? Um suposto anti-imperialismo do governo Ortega justificaria todos os seus vícios?
Cabe aos trabalhadores e ao povo da Nicarágua, sem qualquer ingerência ou sanção do imperialismo, decidir o seu próprio destino, com todos os direitos democráticos de organização e expressão que o regime Ortega-Murillo lhes nega. Estaremos ombro a ombro com o povo nicaragüense nessa luta.

*Julio Turra representa o comitê Nacional do Diálogo e Ação Petista no CILI – Comitê Internacional de Ligação e Intercâmbio

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Diálogo e Ação Petista

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