Luísa Hanune envia carta sobre a situação política
A companheira Luísa Hanune, Secretária-geral do PT da Argélia, e co-coordenadora do CILE – Comitê Internacional de Ligação e Intercâmbio, escreve uma carta aberta a todas as organizações e militantes da classe trabalhadora. O texto é um chamado, diante das condições “excepcionalmente dramáticas que impediram, neste 1º de maio de 2020, os trabalhadores do mundo inteiro de se afirmarem fisicamente como classe social, reafirmando a sua determinação e a sua combatividade, fazem com que me dirija a vocês”.
Uma carta de Luisa Hanune
Argel, 8 de Maio de 2020
Caros companheiros e amigos,
As condições excepcionalmente dramáticas que impediram, neste 1º de maio de 2020, os trabalhadores do mundo inteiro de se afirmarem fisicamente como classe social, reafirmando a sua determinação e a sua combatividade, fazem com que me dirija a vocês.
Argélia
Há um ano, a 1º de maio de 2019 – num movimento generalizado do povo argelino, em continuidade com a revolução pela independência nacional, as suas referências, o seu conteúdo, as suas datas-chave, os seus símbolos – a classe operária argelina recuperava por fim, depois de mais de 50 anos, o direito de manifestar-se com total independência e, ao fazê-lo, voltava a ocupar o seu lugar como uma componente da classe operária mundial, através de uma grandiosa mobilização, numa demonstração de força sem
precedentes.
A reconquista deste direito foi o produto do levante revolucionário, que começou a 22 de fevereiro de 2019, num longo processo de resistência e de combate ininterrupto pelos direitos socioeconômicas, a preservação das conquistas da independência nacional, o direito à organização sindical com total independência e as liberdades democráticas.
Esse combate, reforçado pelo da juventude e de amplos setores oprimidos, atingiu o ponto de ruptura a 22 de fevereiro de 2019, colocando como questão central e de maneira clara a exigência do fim do regime herdado do sistema de partido único, que confiscou a independência nacional em benefício de uma camada de novos ricos predadores que adquiriu um caráter “mafioso” beneficiando da guerra de decomposição e terrorismo durante a década de 1990, para depois se organizar como “oligarquia” durante os dois últimos decênios, apoderando-se dos recursos do país, inclusive dos centros de decisão econômica e política.
Na realidade, o levantamento revolucionário salvou o país de uma deterioração generalizada que visava o seu desmantelamento.
Durante um ano, o processo revolucionário manteve intacto o seu vigor e, à medida que se desenvolvia a mobilização, a maioria foi precisando as suas exigências, numa procura coletiva sem precedentes desde a independência, desafiando a repressão e ultrapassando os obstáculos e as diversas
manobras do Regime, colocado no banco dos réus. Somente o confinamento – decidido pelas autoridades por causa da pandemia da COVID-19 – pôde obrigar a maioria a suspender a mobilização coletiva, as manifestações e concentrações.
Mas, a sua determinação não foi de modo nenhum afetada, como a atestam as mobilizações operárias e populares – apesar do confinamento – para exigir o recebimento dos salários não pagos, contra a miséria que atinge uma parte da população devido à paragem das atividades comerciais, contra os atentados às liberdades, em defesa das empresas públicas em perigo de encerramento, ou para reafirmar a vontade de se enfrentar ao Sistema estabelecido – o qual, ignorando a soberania do povo, tenta
manter-se impondo pretensas reformas políticas.
Trata-se de uma questão argelina?
O levante revolucionário de fevereiro de 2019, na Argélia, não foi um fenómeno único: ele era uma expressão da ascensão revolucionária da classe operária e dos povos, à escala internacional, contra o capital. Houve levantamentos similares, em simultâneo, em diversos países: Chile, Líbano,… Para além das diferenças na forma de organização, que por outro lado tendem a apagar-se, as palavras de ordem – quer dizer o conteúdo – eram as mesmas, colocando em todas as línguas a exigência do fim dos regimes
submetidos ao imperialismo, como condição para a resolução dos problemas.
Uma tal aposta – livrar-se do sistema capitalista em decomposição, que esmaga as classes operárias e os povos sob o jugo da opressão e da exploração, para garantir um maior lucro à minoria dos muito ricos, pondo frente a frente explorados e exploradores, oprimidos e opressores, numa confrontação aberta – exige, para conseguir um desenlace positivo, que a classe operária, organizada com total independência nos seus sindicatos e partidos, assuma a sua missão histórica.
É este ensinamento que tiramos em todos os países, o qual está no centro da nossa reflexão comum na Argélia e noutros lugares.
E isto porque as forças da reação e da contra-revolução ao serviço do capital organiza, pela sua parte – em cada país e à escala mundial – a defesa encarniçada da manutenção do sistema da propriedade privada dos grandes meios de produção, implicando a manutenção dos regimes rejeitados, recorrendo ora a subterfúgios, ora à repressão.
Para isso, utilizam os partidos que viraram as costas à classe operária e a amplos setores do povo, ainda que fraudulentamente se continuem a reclamar deles, e conduzem uma ofensiva ininterrupta contra
as organizações sindicais para as integrar na ordem estabelecida, a fim de desarmar a classe operária.
Minha acusação e condenação
Neste contexto, fui acusada a 9 de maio de 2019, pelo Tribunal Militar de Blida, e condenada em seguida a 15 anos de prisão efectiva por “atentado à autoridade de um chefe militar e participação numa operação visando derrubar ou mudar o Regime”.
As tomadas de posição e os combates do PT, desde a sua criação em junho de 1990, sempre colocaram no centro o fim do sistema de partido único, a restituição da palavra ao povo para que exerça a sua soberania através de uma Assembleia Constituinte Soberana, a defesa dos direitos socioeconômicas da classe operária e da maioria do povo, o respeito dos direitos democráticos (de expressão, de organização e de manifestação), a independência dos sindicatos, o reconhecimento do Tamazight como
língua nacional e oficial, a igualdade de direitos entre mulheres e homens, a defesa da propriedade coletiva da nação, quer dizer, o advento da democracia com o seu conteúdo político e social, completando os objetivos da revolução argelina.
E desde 22 de fevereiro de 2019 – deixando claro que se trata, sem margem para dúvidas, de um processo revolucionário que coloca, desde o princípio e sem ambiguidades a questão do poder, do Regime, e não um Hirak (ação) de objetivos limitados a reivindicações socioeconômicas e políticas, no âmbito de uma reforma do sistema – o PT atualizou as suas posições, pronunciando-se claramente pelo fim do sistema, pelo exercício da plena soberania do povo através de uma Assembleia Constituinte Soberana, por
um estado democrático nem religioso nem militar, pela soberania econômica e a consequente ruptura com o imperialismo, pela revogação das leis anti-nacionais, pela ruptura do acordo de associação com a União
Européia etc.
Estas posições e a intervenção do PT no processo revolucionário valeram-me nove meses de prisão.
Graças à poderosa mobilização nacional e internacional exigindo a minha libertação – empreendida pelo Acordo Internacional dos Trabalhadores – AcIT e em que todos vocês participaram plenamente – recuperei a minha liberdade a 10 de Fevereiro de 2020.
Mas, lamentavelmente, não tive tempo para me reinserir por completo na atividade política e reunir-me com vocês, pois encontro-me de novo encerrada – no quadro do confinamento sanitário – horrorizada e indignada, tal como vós, pelo desastre mundial que está em curso desde há três meses.
Durante os nove meses de detenção, segui o desenvolvimento dos acontecimentos nacionais e mundiais que, todos os dias, confirmavam a ascensão revolucionária dos trabalhadores e dos povos oprimidos, em todos os continentes, contra o sistema capitalista cada vez mais feroz e contra os governos ao seu serviço. E esta tendência para a confrontação declarada e aberta, segue o seu curso, reforçada pela horrível situação aberta pela pandemia do covid-19.
Para a classe operária e os povos oprimidos há, desde há bastante tempo, uma verdade irrefutável: a sua sobrevivência, a sobrevivência da humanidade empurrada para o abismo pelo capital, está
condicionada pela eliminação do sistema capitalista, portador de guerras, de caos, de regressões de todas as classes, etc.
Trata-se da assustadora realidade: não é que a barbárie esteja a aumentar, é ela ser já o traço característico da situação mundial. Os números aterrorizadores das vítimas da pandemia do Coronavírus, o
desespero e a angústia das populações confinadas, a fome que assola milhões de famílias (principalmente
na África subsaariana), o afundamento econômico generalizado, o da cotação do petróleo, confirmam-no cada dia mais.
As trágicas consequências do covid-19 revelam, como nunca dantes, a impotência dos governos ao serviço do capital para salvar vidas humanas, deter a propagação do vírus garantindo as necessidades em matéria de protecção sanitária, os cuidados médicos em estruturas sanitárias devidamente equipadas e em número suficiente, e inclusive as necessidades alimentares, os salários e as pensões nalguns países.
Com efeito, estas necessidades vitais são incompatíveis com a submissão dos governos às leis e exigências do capital.
Fica assim estabelecido, em todo o seu horror, a selvajaria das políticas aplicadas a mata-cavalos, desde há décadas, pelos governos submetidos ao capital, sob as ordens das suas instituições – Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM), União Européia (UE) e etc:
- políticas de desmantelamento sistemático das conquistas socioeconômicas, como os sistemas de proteção social e de Saúde pública, arrancados com duras lutas pelos trabalhadores, durante quase dois séculos, e pelos povos oprimidos no seu combate pela emancipação nacional;
- políticas de desmoronamento das missões sociais dos Estados mediante drásticas restrições orçamentais;
- privatizações/liquidação do setor público (empresas, serviços…);
- desinvestimento dos Estados provocando, entre outras coisas, a “mafiosização” da indústria farmacêutica entregue à rapina das multinacionais em busca de lucros.
E nenhum país está ao abrigo deste desastre.
Em junho de 1991, Michel Camdessus – então Diretor-Geral do FMI – declarou, em Genebra, na assembleia geral anual da Organização Internacional do Trabalho (OIT): “Já não há norte e sul, países ricos e países pobres, os Planos de Ajuste Estrutural devem ser aplicados em todo o mundo”.
O que se constata hoje de maneira terrível
Os chamados países ricos da Europa e os EUA são os mais duramente afetados pela Pandemia, com um número exorbitante de perdas de vidas humanas, digno da Idade Média.
Se eram previsíveis as dificuldades para afrontar qualquer situação de urgência nos países pobres da África, da Ásia e da América Latina, a catástrofe que está a atingir principalmente a Europa e os EUA
mostra a brutalidade das políticas que neles foram impostas, levando a um nivelamento por baixo que unifica o conjunto do planeta na decadência. O peixe começa sempre a apodrecer pela cabeça. O declínio
do sistema capitalista, que ameaça as próprias bases da civilização humana, confirma-se na Europa e nos EUA.
Alguns governos confessam o seu desespero; outros, reconhecendo a destruição dos sistemas sanitários – que foi efetuada a marcha forçada – prometem corrigir as suas políticas sanitárias. Todos choram lágrimas de cocodrilo.
Mas isto é que todos constatamos: os governos aproveitam o confinamento das populações para fazer aprovar, pelos obedientes parlamentos, leis anti-sociais e anti-operárias – que programam o desmantelamento das conquistas socioeconômicas vitais que ainda não tenham ainda sido liquidadas – ou leis totalitárias para restringir as liberdades democráticas, prevendo o desconfinamento e as explosões de cólera dos trabalhadores e dos povos, perante as mortíferas políticas de austeridade ao serviço do
imperialismo que alguns governos estão já a anunciar como “soluções” para a crise econômica gerada pela pandemia e o confinamento.
Alguns governos preparam planos de demissões em massa e de
cortes salariais.
E esses planos assassinos apenas reforçam a inevitabilidade das iminentes explosões revolucionárias.
Eles são responsáveis e culpados…
A selvajaria do imperialismo dos EUA não tem qualquer limite: Donald Trump encarna, cada dia mais, o carácter imprevisível, cada vez mais feroz e terrorista do imperialismo em crise mortal.
Enquanto os EUA estão a ser devastados pelo vírus, Trump persiste na sua política criminosa contra a classe operária e vastos setores da população (em particular os negros estadunidenses), mantém e aprofunda a sua guerra de embargo assassino contra a Venezuela e o Irã, e, através de terceiros, contra a população palestina já bloqueada em Gaza.
Ameaça estender a sua guerra de extermínio dos povos, inclusive com o Coronavírus, confiscando os recursos financeiros procedentes das suas riquezas naturais a outros países, entre eles a China…
Não, o covid-19 não é uma maldição nem uma catástrofe natural. A sua propagação à escala planetária a uma velocidade vertiginosa – provocando o confinamento de todo o planeta – e o espantoso número de mortos são um produto de políticas criminosas ao serviço do capital.
Nada será como antes e todos os governos o sabem. Haverá um antes e um depois do covid-19. De imediato, cresce a indignação contra os responsáveis deste desastre.
A classe operária – que, uma vez mais, em especial o pessoal da saúde, os trabalhadores de setores nevrálgicos que prosseguiram a sua atividade, os docentes que garantiram os cursos com meios eletrônicos ou a televisão, os investigadores que se esforçam por encontrar remédios e vacinas
etc. – está a demonstrar, nesta terrível situação, qual é a única fonte portadora de progresso, capaz de salvar a humanidade da barbárie para que o sistema capitalista a arrasta.
Unida como nunca à escala mundial, ela saberá abrir uma saída positiva, a nível mundial e em cada país.
Mantenhamos, pois, o intercâmbio entre nós para preparar o nosso próximo encontro.
Saudações fraternas,
Luísa Hanune