A questão dos Coletes Amarelos na França

O Diálogo e Ação Petista reproduz abaixo o artigo de Michel Sérac, professor de História e militante do Partido Operário Independente (POI), originalmente publicado no jornal Informations Ouvrières (IO) em 21 de agosto de 2019, na França. Também reproduzimos a entrevista com Jérôme Rodrigues, líder “colete amarelo”, publicada na edição número 568 do IO, em 29 de agosto. Informations Ouvrières é o órgão do Partido Operário Independente francês, integrante do Acordo Internacional dos Trabalhadores e dos Povos, do qual o Diálogo e Ação Petista também é membro.

COLETES AMARELOS: AS SUAS REIVINDICAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS

[A partir da versão portuguesa, artigo publicado em Informations Ouvrières, nº 567, em 21.08.2019, na França]

Erradicação da miséria sob todas as formas, reestatização da energia, dos bancos, dos transportes, direito incondicional à habitação, serviços públicos gratuitos para todos, qualquer seja a sua nacionalidade…
Dissolução do governo, refundação da nossa República pelas assembleias representativas do povo, eleitos revogáveis a todos os níveis, abolição dos privilégios dos “aristocratas do dinheiro público”…

Por Michel Sérac

Trata-se de uma subversão duradoura da vida política nacional, que começou com o levante dos Coletes Amarelos. Para centenas de milhares de oprimidos, de trabalhadores e de pobres, o espartilho da “alternância” enganosa direita/esquerda explodiu em pedaços. Os Coletes Amarelos caminham para descobrir a “democracia real”, que não pode nascer, senão da abolição do regime.
Duas Franças estão frente à frente, de forma hostil: de um lado o poder, ou seja o regime « monárquico », instrumento da minoria dos multimilionários, rodeado pela sua classe política – partidos de governo, privilegiados do Estado e dos grandes meios de comunicação –, um poder liberticida protegido por uma selvagem repressão; do outro, a maioria popular, que quer viver dignamente do seu trabalho, o que explica o apoio entusiástico aos Coletes Amarelos (tão forte que a mídia não pôde esconder) por parte dos explorados, dos pobres, dos aposentados e de muitos democratas, indignados com o curso totalitário e policial do regime.

Numa primeira fase, em 2017, o quadro antigo da hipocrisia política foi duplamente dinamitado.
A partir de baixo: 7 milhões de eleitores “insubmissos” viraram a mesa da “união da esquerda”, sancionando o quinquênio de Hollande (1), o seu servilismo abjeto face ao capital, os seus ataques reacionários contra os direitos dos trabalhadores. Donde, o ódio dos potentados do Sistema, acima de tudo, contra a LFI (La France Insoumise, A França Insubmissa) e Mélenchon (líder da LFI – NdT).
Por cima, o novo aventureiro político, fabricado e financiado para o Elisée (sede da presidencia da República – NdT) pelos multimilionários, foi obrigado a “quebrar” os partidos “opositores” e a formar o partido presidencial, com os seus restos, resíduos e membros amputados.
Ladrões e compadres de direita, de esquerda, do centro e Verdes, pavoneiam-se, lado a lado, no governo do presidente dos ricos, confirmando, assim, que as suas “oposições” de ontem não foram senão um logro, uma encenação para partilharem os privilégios do poder; as máscaras caem.
Foi louvada a habilidade de Macron nesta intriga.
Mas quando se levantaram os Coletes Amarelos, quando começou, no final de 2018, a segunda fase de levante dos oprimidos, não nas urnas mas nas ruas, o patronato compreendeu com angústia que “esta raiva não tem receptáculo na oposição” (Les Échos, jornal do capital financeiro).
Demasiado tarde, os Coletes Amarelos derrubaram as barreiras institucionais e caminharam afoitos em direção aos centros do poder executivo, aos gritos de “demissão, destituição, o poder ao povo”.

“QUARENTA ANOS DE MENTIRAS, DE ABANDONOS E DE TRAIÇÕES”
Em janeiro de 2019 foi publicado o relatório “O Estado de Espírito de uma Década Francesa”, pelo Centro de Estudos da Vida Política Francesa (Cevipof), informação rapidamente abafada. Não é de admirar. Eis as conclusões dos estudiosos, após dez anos de investigações:
85% das pessoas consideram que “os dirigentes políticos não se ocupam delas” e 74% consideram que são “majoritariamente corruptos”. Os políticos oficiais defrontam-se com “79% de opiniões negativas” – desconfiança, aversão, tédio e medo. Uma exceção neste desprezo geral pela hipocrisia dos “políticos”: os presidentes de Câmaras (equivalente ao prefeito, no parlamentasmo dos municipios franceses – NdT). Esta exceção confirma a regra, já que – exaustos, desmoralizados pela asfixia das Comunas (municípios), recusando o jugo dos Prefeitos (na França, nome dado a uma espécie de governador de região – NdT), indicados pelo governo central, metade dos presidentes de Câmara não se recandidata!
Os Coletes Amarelos expressam, de forma clara, a opinião da maioria do povo quando declaram: “Os eleitos, que deviam servir aos franceses, aproveitam o poder para se tornarem aristocratas do dinheiro público.”
“Há quarenta anos que, presidente após presidente, eleição após eleição, as traições, as mentiras e os abandonos se sucedem” (2). Foi há quarenta anos que teve o início da falsa “alternância” (eleição alternativa esquerda/direita, NdT).
Reestatizar! Restabelecer todos os serviços públicos! A destruição e a privatização dos serviços públicos são um tema crucial para a indignação dos cidadãos: “Reestatizemos e reconstruamos os principais serviços do Estado: estradas, eletricidade, gás, trens…”, dizem os Coletes Amarelos da localidade de Puy-de-Dôme.
“Reestatização da energia, das estradas e dos bancos” (os CAs em Saint-Nazaire). A mesma coisa nas famosas Diretivas do Povo dos Cas, em Sarthe.

QUAIS SÃO OS FATOS?
As estradas do Sul foram entregues aos capitalistas pelo governo de “esquerda plural” de Jospin (PS, 1997-2002) e o seu ministro dos Transportes Gayssot (PCF). Eles privatizaram a Air France, cindiram a SNCF (estatal com monopólio das ferrovias – NdT) para preparar a sua abertura à concorrência, desejada pela União Europeia. Raffarin e Villepin, primeiros-ministros sob a presidência de Chirac, (direita – NdT) concluíram a privatização das estradas, fonte de enormes lucros capitalistas; Hollande e Valls, seu primeiro-ministro (ambos PS – NdT), encarregaram-se de vender os aeroportos das províncias; Macron veio a seguir, com o aeroporto de Paris.
Foi Juppé (direita) quem preparou a entrada da France Telecom (monopólio da telefonia) na Bolsa de Valores, foi Jospin (PS-PCF-Verdes) que a realizou. A abertura à concorrência da EDF (monopólio estatal da eletricidade) e da GDF (do gás) começou em 2000 (quando Jospin era primeiro-ministro), e estas empresas públicas foram oferecidas aos banqueiros, por Chirac (direita), em 2005.
O que dizer da longa cadeia de crimes de Estado que sacrificam a saúde pública?
Desde a invenção por Mitterrand (PS) e do seu ministro da Saúde, Ralite (PCF), do “orçamento global” – forma autoritária para asfixiar os hospitais – até o fechamento e reagrupamento “rentável” de serviços, maternidades, onde se sucedem Aubry, Kouchner, Dufoix, Bachelot, Touraine, Buzyn (ministros de vários partidos – NDT), implacáveis ao suprimir dezenas de milhares de leitos e estrangular a psiquiatria, trata-se da mesma “reforma” reacionária que resulta no escândalo dos serviços de urgência, e na consequente luta massiva dos servidores da saúde.Contra os aposentados, a cumplicidade é permanente e total, de Mitterrand-Balladur (direita-esquerda) à Rocard (PS), Fillon (direita) e Macron…
A ADA (Assembleia das Assembleias dos Coletes Amarelos), em Commercy, exige “a igualdade e a consideração por todas e todos, qualquer que seja a sua nacionalidade”, “o aumento imediato dos salários e dos ajudas sociais, das pensões, o direito incondicional à habitação e à saúde, à educação, aos serviços públicos gratuitos para todos”. A ADA reivindica, longe dos “palcos televisivos e das pseudo mesas-redondas organizadas por Macron”, “a democracia real”.
O que resulta na exigência da revogação das leis e “reformas” do regime, na reconquista dos direitos do povo. E levanta a questão das instituições políticas.

“REFUNDAÇÃO DA NOSSA REPÚBLICA, REVOGABILIDADE DOS ELEITOS EM TODOS OS NÍVEIS” (ADA DE SAINT-NAZAIRE)
É o próprio regime quem alimenta, na opinião pública, o desprezo por todos os partidos de governo.
Em 2013, num país onde há 9 milhões de pobres sofrendo, na cidade de Paris centenas de crianças dormem na rua, Hollande e o seu conselheiro Macron, em seu palácio, decretaam a isenção de impostos dos banqueiros, dos multimilionários do CAC 40 (3), o chamado crédito de imposto. Esta covardia, esta prostituição ao capital financeiro que é o CICE (4), é aprovada, e retomada nas eleição de 2017 – com a exceção de Mélenchon – pelos candidatos presidenciais Le Pen (extrema-direita), Fillon (direita), Hamon (PS) e, claro, Macron.
A França atravessa “uma imensa crise de soberania”, declaram os Coletes Amarelos.
O sufrágio universal, uma conquista democrática, pode ser utilizado, de baixo, para inverter ou travar a ação deste ou daquele governo, precipitando uma crise política favorável à luta social. Mas o voto “Não”(5) da maioria do povo francês em 2005, depois espezinhado e traído, testemunha os limites desse instrumento.
Desde há muito tempo, o capital financeiro soube controlar os partidos de governo, oferecendo aos seus dirigentes um modo de vida privilegiado, a melhor garantia para que esses “representantes” burgueses e pequeno-burgueses bem-sucedidos, saibam conformar as suas ideias e os seus valores, ao interesse bem da classe dominante, desprezando o mandato dos eleitores.
A esta doença infecciosa da democracia burguesa, a esta representação mentirosa e adulterada, os Coletes Amarelos opõem um remédio infalível, que está resumido em dois artigos:
1) Remuneração dos eleitos pelo salário médio (Diretivas do Povo);
2) Refundação da nossa República pelas assembleias representativas do povo e revogabilidade dos eleitos em todos os níveis (formulação de Saint-Nazaire).
Estes são princípios da Comuna de Paris (a revolução que tomou o poder nesta cidade em 1870 – NdT). Hoje, após a cruel experiência de quarenta anos de traições e de abandonos, existirá uma outra alternativa de “democracia real” ao apodrecimento das instituições, um outro meio de restituir o poder ao povo? Esta discussão diz respeito a todo o movimento dos trabalhadores.
Desde janeiro de 2019, a ADA em Commercy pronunciou-se pela “greve massiva e prorrogável, construída na base pelos próprios grevistas”.
As reivindicações radicais dos Coletes Amarelos aumentam o fosso entre as forças da reação e as da resistência; elas irrigam o movimento dos trabalahdores com um sangue novo; elas dão à reconquista da democracia o seu conteúdo de emancipação dos trabalhadores.
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(1) O mandato do Presidente da República no sistema francês é de 5 anos.
(2) Coletiva de imprensa dos Coletes Amarelos, em frente à sala do Jeu de Paume (15.12.2018). As citações do artigo são extraídas desse documento das ADA (Assembleia das Assembleias) nas localidades de Commercy e de Saint-Nazaire – realizadas nestas cidades com delegados de todo o páis – NdT), das Diretivas do Povo (Sarthe) e de outros textos dos Coletes publicados em “Les Gilets jaunes, documents et textes”, de Patrick Farbiaz.
(3) O CAC 40, cujo nome deriva da expressão « Cotação Assistida em Contínuo », é o índice da Bolsa de Valores de Paris que reúne as 40 maiores empresas abertas na França.
(4) CICE é o acronimo de “Crédito de Imposto para a Competitividade e o Emprego”.
(5) Trata-se do Referendo da chamada “Constituição europeia”, realizado na França em maio de 2005, rejeitada por 55% dos votos.

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[Entrevista de um líder “colete amarelo”, publicada em Informations Ouvrières, número 568, 29 de agosto, França]

JÉRÔME RODRIGUES: “TOMEMOS O EXEMPLO DE HONG-KONG”

Como você recebeu a morte de Steve?
Eu fui a cidade Nantes. Queria compreender. Você chega numa terra de ninguém. Na TV, tinha-se a impressão que o cais estava na beira d`água. São quatro metros. Cair de quatro metros? Eu estava de cabelo em pé. Fiz uma “live” de dez minutos para tentar que as pessoas compreendessem, pois era algo impressionante. Um ambiente duro para viver. Imagino a reação de seus parentes, aos quais transmiti meu apoio e solidariedade. Humanamente é nojento. Mas a utilização mediática e política que fizeram, é ainda mais abjeto.
O verão foi marcado pela morte de Steve, mas também pela greve nas urgências hospitalares. Como você vê a reentrada (2º semestre – NdT)?
É preciso ver como esse presidente “cegador” (*) vai aplicar suas reformas e com qual molho ele vai querer nos jantar. E também a forma como as pessoas vão reagir, incluindo os sindicalizados. A gente vê raiva também nos sindicalizados contra as suas próprias elites, eles querem que as coisas mudem. Eu conclamo a uma convergência. Não uma convergência corporativa, mas uma convergência de ideias, de homens. É o que vemos nas manifestações. Não queremos sindicatos, não queremos… Eu discuto com muitos sindicalizados sobre o movimento. Eles estão lá, eles usam os coletes amarelos, nos sábados (dia de manifestação dos “coletes amarelos” – NdT) eles marcham. Eu chamo essas pessoas que estão motivadas, que aderiram à ideia de melhor viver, a irem buscar seus colegas e lhes explicar que vamos conseguir. Eu sei que vou chocar, mas eu sou assim, você me conhece. Sinto uma frustração em muita gente de associações, sindicatos ou mesmo de certos partidos, porque em sete meses fizemos mudar mais as coisas, pode ser que não tenhamos evoluído, mas ao menos sacudimos o coqueiro, mais que em vinte anos de luta de alguns. Posso entender essa frustração. Os caras estão há 20 anos no combate, arranharam a superfície e não conseguiram, fizeram dias de greve e isso não mudou nada. A eles de se questionar, de colocar a si próprios as boas questões. O que está se passando e porque hoje os “coletes amarelos” conseguem fazer o que fazem? Num dado momento, é preciso parar com tal sindicato fazer greve na terça-feira, outro fazer na quarta, e assim vai. Os caras vêm com a gente nos sábados. Seremos numerosos, lutaremos para melhor viver e tentaremos construir juntos.
Em 21 de agosto, Macron defendeu de novo a ação dos corpos de segurança, da Justiça e o Estado de direito que, segundo ele, reina no país, apesar da repressão inédita que ele desencadeou.
Ele utilizou sua milícia privada de “cegadores” só para se salvar. Ele não usou a polícia para defender o país, mas para defender a si próprio.
O que você vai dizer a todos esses companheiros, às famílias que estiveram nas manifestações e aos que estão em greve nos hospitais?
Tomemos o exemplo de Hong-Kong.

(*) referência ao fato, célebre na França, de que Jérôme já era uma liderança dos “coletes amarelos” quando, há alguns meses, foi atingido num olho por um projétil lançado pelas tropas da segurança do Estado que reprimiam uma das suas manifestações – NdT.

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